Crónicas Rurais
NOTA DO AUTOR
As crónicas
aqui compiladas foram por mim escritas para o programa – em viagem pelo
Concelho - da Rádio Onda Livre Macedense – nos anos de 1987/88, no qual tinha a
meu cargo a pesquisa, escrita e locução das crónicas, a selecção musical era de
Horácio Morais.
Na altura o
programa teve bastante audiência e as crónicas apresentadas, estas e, outras com outros temas sobre o Concelho, despertaram interesse nos ouvintes, os quais
participavam activamente no programa, respondendo às perguntas que se seguiam.
Atendendo
aos temas das mesmas e para que certos costumes não fiquem só na memória de
alguns, entendi que seria útil compilar estas com o título geral de crónicas
rurais. Não há neste trabalho qualquer pretensão, não é um estudo ou recolha
etnográfica. As crónicas aqui apresentadas são as mesmas que foram feitas para
aquele programa de rádio, agora com a redacção adaptada para esta edição.
João Marques de Oliveira
Casa Típica Transmontana
Quem visita o Concelho de Macedo de
Cavaleiros no “ Coração do Nordeste Transmontano “, pode apreciar a bela
paisagem: rude sem ser agreste, erma sem ser deserta; salpicada de pequenas
povoações, onde ainda subsistem algumas casas de arquitectura típica
transmontana.
A construção desta região de
características próprias dentro do “estilo” da casa transmontana, influenciado
pelo meio-ambiente e pelas condições económico-sociais, dá uma certa
individualidade, “personalidade” própria à paisagem da região.
No Concelho é possível encontrar dois tipos de
construção, ainda que ambos com as características da arquitectura
transmontana, diferentes entre si essencialmente no seu aspecto exterior, sendo
responsável por tal variedade a morfologia do terreno, e o material utilizado
na construção, variável conforme a estrutura geológica do terreno, pois embora
o xisto seja predominante, existem zonas em que o granito abunda Assim, temos o
casario da serra enegrecido e um pouco triste em contraste com as povoações dos
vales com casas claras de aspecto mais alegre. O aspecto enegrecido do casario
da serra devesse a cor da pedra em que é feito, - o xisto -; as casas mais
claras das povoações dos vales são geralmente feitas em granito.
Une, no “estilo” da
arquitectura transmontana, esta variedade, o arranjo arquitectónico entre a
casa de habitação e as divisões necessárias para o trabalho agrícola.
Pena é, que na maioria das
aldeias do Concelho, bem como de toda a região transmontana, se esteja a perder
este valor do património arquitectónico regional (e nacional), que é a casa
típica de Trás-os-Montes; vendo-se em vez dela, casa com estilos de construção
“importados” dos países para onde os filhos da terra tiveram de emigrar em
busca de melhores condições de vida.
Mas, felizmente, ainda podemos
ver e apreciar nas aldeias e na parte velha da Cidade, alguns exemplares dessas
casas, as quais lamentavelmente são de cada vez mais raras e das existentes algumas
vão-se degradando com o passar do tempo, sendo urgente que alguma coisa se faça
para a sua preservação.
A casa típica transmontana é um
bom exemplo do enquadramento do tipo de habitação no meio-ambiente e na
economia regional. A adaptação ao extremo rigor do clima, em frio e calor, - “
nove meses de Inverno e três de inferno“, assim define o povo o clima da
região; a satisfação das necessidades habitacionais e económicas agro-pecuárias
dos seus ocupantes; o uso dos materiais de construção, que a região oferece,
criou o estilo da arquitectura da casa típica transmontana.
A casa transmontana dispõe de
dois pisos: o rés-do-chão e o primeiro andar. No rés-do-chão, situa-se o corte,
(local destinado para os animais) permitindo assim ao proprietário rural, alimentar
os animais durante a noite sem necessidade de fazer grandes caminhadas e
expor-se ao frio. Durante as noites frias a presença dos animais no andar
térreo aquece a casa, tornando-a menos sensível aos rigores do Inverno, - “nove
meses de Inverno”. No Verão os animais
passam o dia fora nas pastagens ou nos trabalhos do campo, podendo o lavrador
manter a casa fresca, defendendo-a do muito calor que se faz sentir durante
esta Estação do ano, - “três meses de inferno” -, de tão altas temperaturas que
se atingem.
É também no rés-do-chão que se
situa a adega para guardar o vinho, (nas pipas) onde não falta o presunto
dependurado na trave para o amigo e o visitante provar; trave em que na altura
da matança, se dependurou o porco depois de aberto para escorrer. É neste andar
térreo que se guardam os produtos agrícolas e as forragens para a alimentação
dos animais.
Em algumas casas mais
abastadas, fica também no rés-do-chão o lagar do vinho e o do azeite ou então,
estas dependências, necessárias as lides do campo, situam-se fora da casa, mas
dentro do terreiro que a envolve, onde se situa também o palheiro e o sequeiro,
o qual é abastecido de lenha no fim do Verão, para o rigor do Outono e Inverno.
A varanda, que ocupa toda a
frente da casa, além de proporcionar saborear a fresca das noites de Verão,
serve para a secagem de vários produtos agrícolas, como por exemplo: o figo, o
grão-de-bico, feijão, nozes, amêndoas.
No primeiro andar da casa ficam
os aposentos do agricultor. As divisões são geralmente de grandes dimensões; isto
na casa do lavrador rico, na do mais modesto, ainda que amplas, as divisões são
menores. Nas construções mais antigas as paredes interiores eram feitas de
estuque com barro e rebocadas com cal branca.
A ampla cozinha, divisão
principal da casa, onde se passa a maior parte do tempo de descanso nas noites
de Inverno em animados serões até à hora da deita, em volta da lareira com toda
a família reunida, sentados nos escanos, contam-se lendas de mouras encantadas,
velhas histórias de bruxas e bruxedos, recordam-se outros tempos e como não
poderia deixar de ser comentam-se as últimas da aldeia. A lareira, de chupão
alto em chapa e ferro, indispensável na cozinha transmontana, além de aquecer a
casa, também é nela que se preparam as refeições e se ferve a comida para os
animais. É na cozinha que se seca o fumeiro ao calor e com o fumo da lareira
sempre sustentada por grandes cavacos.
Durante o Verão as refeições
são feitas no sobrado, - aqui na região chama-se sobrado, ao átrio de entrada
de superfície ampla, que se estende da varanda ou da porta de entrada das
escaleiras (escadas exteriores), até ao acesso para as outras divisões da casa.
A sala de jantar só e usada em dias de festa ou quando os convidados são de
cerimónia.
Este tipo de construção, de
arquitectura descuidada e com pouco conforto, não tinha relação com os recursos
económicos dos seus ocupantes. Para o lavrador transmontano a habitação não
necessitava de muitos confortos. A prosperidade do lavrador via-se pelas suas
terras, não pela casa que habitava, traduz esta ideia o dito popular: - “ casa
aonde caibas e terras que não saibas “.
Com o desenvolvimento, que
tardou mas chegou (ou vai chegando) a esta região, a noção de conforto mudou, as
“ novas “ necessidades alteraram as prioridades, se bem que a riqueza do
agricultor continue a ser a terra, o conforto da sua casa é agora também
importante, pelo que na construção das suas habitações o lavrador da região dá
maior importância ao seu bem-estar e conforto. A casa do lavrador rico ou
próspero proprietário rural é hoje, de construção mais cuidada e de ar mais
imponente, As novas construções, infelizmente, já poucas características da
casa típica transmontana conservam, mantendo-se em alguns casos, poucos, a
proximidade entre a casa de habitação e as dependências necessárias ao trabalho
da lavoura.
O aspecto exterior da casa (de
outros tempos) tinha a rudeza da pedra de que era feita, talhada de um modo um
pouco tosco, com as portas e janelas de boa madeira, esse mesmo aspecto, ainda
que rude, combinava com a simplicidade das pessoas desta região, conhecidas
ainda hoje pela sua hospitalidade, por isso mesmo a porta da casa, da mais
humilde à mais abastada, está sempre aberta e a mesa posta à espera da visita
de quem passa.
A Castanha
A pedra de armas da Cidade de Macedo de Cavaleiros (e do Concelho) têm
como motivo principal, um ramo de castanheiro com três ouriços, representado
assim a abundância da castanha no Concelho, em maior quantidade noutros tempos,
mas ainda hoje o castanheiro manso predomina na paisagem. Esta árvore de alta
copa, agrupada em vastos soutos, povoa as encostas e os planaltos, com maior
incidência na Serra da Nogueira e na Serra de Bornes.
A escolha, do ramo de castanheiro com os ouriços da castanha, para
figurar como “símbolo” na pedra de armas é discutível, talvez os Cavaleiros da
Maça tivessem um simbolismo mais forte, tendo em conta a lenda da origem do
nome – Macedo de Cavaleiros –, mas o seu autor entendeu que o Concelho ficaria
bem “representado” por um, dos muitos, produtos agrícolas em que o Concelho é
rico, por ventura aquele que na época tinha maior peso na economia do novel
Concelho.
- “Alto cavaleiro, abrem-se lhe os bolsos e cai-lhe o dinheiro. O que é
que é?” Pergunta assim o povo no seu jogo de adivinhas. Querendo com esta
referir-se ao castanheiro; “alto cavaleiro”, assim visto pela sua alta copa;
“os bolsos”, são os ouriços; “o dinheiro”, a riqueza da árvore, é o seu fruto –
a castanha.
Com os primeiros ventos fortes do Outono, a castanha caí ao chão, alguma
ainda dentro dos ouriços. É chegada a altura da apanha, então podemos ver
homens e mulheres pelos soutos, em mais um dia de trabalho agrícola. Os homens
varejam o castanheiro, para caírem os últimos ouriços que o vento não deitou
abaixo, as mulheres de cesta na mão, agaixadas apanham a castanha caída no
chão, com as mãos protegidas por alguma coisa, a fazer de luvas, – meias velhas
de lã, nas quais fizeram uns buracos para saírem os dedos –, é que no chão
misturados, com as castanhas soltas, há ouriços com os espinhos bem afiados,
alguns deles têm castanhas dentro, é pois necessário abrir o ouriço com a ajuda
de um pau, para depois as retirar. Cada ouriço tem duas ou três castanhas, às
vezes quatro. Na cesta (feita de vergas de castanheiro) vão, as mulheres,
metendo as castanhas, que depois de cheia é despejada em sacos. Os homens atam
os sacos já cheios, e levam-nos para o carro de bois, no qual são transportados
para o armazém. Assim é, quando a quantidade é muita, sendo pouca o transporte
é feito ao lombo de burros ou machos.
À castanha de boa qualidade chamam-lhe, aqui na região, “ rebordã ”, tem
a polpa grande e é muito saborosa. Quando é mirrada, com a polpa seca, com as
cascas quase coladas, chamam-lhe “fulecra”, esta não tem proveito, é para
deitar fora.
Na nossa cozinha regional há vários pratos e doces confeccionados com
este fruto, são exemplo: o caldo de castanhas[1], javali com castanhas[2] e a
compota de castanhas[3]. Mas são também comidas cozidas, assadas ou mesmo
cruas. Nas noites frias, ao calor da típica lareira transmontana, durante o
serão, cozidas numa panela com água e uma mão cheia de sal, ao calor dos
cavacos que ardem, ou então assadas no assador dependurado no gancho das
caldeiras, ou assadas no borralho, são saboreadas com histórias e lendas à
mistura; para acompanhar o “bilhó” (castanha assada limpa de casca e pele)
serve-se jeropiga ou aguardente e, assim se vai passando o serão.
Este fruto faz também parte da alimentação para a engorda do porco, na
caldeira, dependurada no gancho da lareira, misturadas com batatas, nabos e
outros produtos, cozem até ficarem quase em papa, com esta “vianda” se alimenta
o animal até ficar bem cevado, mas o porco também é apreciador da castanha
crua. Para a alimentação do cevado é geralmente utilizada a castanha de menor
qualidade.
O frio nesta época do ano, apesar de ainda estarmos no Outono, já faz
lembrar o Inverno, as noites são frias e os dias por vezes chuvosos e com
temperaturas baixas, o tempo não é convidativo a passeios pelo campo. Mas,
porque São Martinho gosta de castanhas assadas e por favor de São Pedro, que é
seu amigo, no meio deste tempo invernoso, surge o “Verão de São Martinho”. É
então altura dos magustos no campo, oportunidade para com o pretexto das
castanhas assadas se passar uma tarde de alegre convívio, onde não falta o
vinho novo para acompanhar o bilhó; “no São Martinho prova-se o vinho” diz o
ditado.
Este fruto também se pode conservar para ser comido mais lá para diante,
conserva-se fresca em talhas de barro com areia.
Como diz o povo, - “ as castanhas comem-se no primeiro de Maio, para o
burro não morder”. Outro dito popular (este relacionado com as castanhas e o
prolongamento do tempo frio), diz – “em Maio come a velha castanhas ao
borralho”
Este produto agrícola da região é vendido, na sua maioria, para fora do
Concelho e até mesmo para exportação, principalmente para a vizinha Espanha e
França.
Nas grandes cidades do país, nomeadamente no Porto e Lisboa, com os
primeiros dias “frios” do Outono e durante todo o Inverno, podemos encontrar
pelas ruas os típicos vendedores de castanha assada, vendendo cartuchos de
papel (dantes feitos em papel de jornal ou folhas de listas telefônicas velhas.
) com meia dúzia ou uma dúzia de
castanhas, os quais enquanto assam as castanhas nos assadores que transportam
num “carrinho” atrelado a uma bicicleta, apregoam bem alto:
- “Quem quer castanha assada? ... São quentinhas e boas!
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[1] Caldo de castanhas: Retira-se a casca e a pele à castanha ( o casaco
e a camisa). Descascam-se: batatas,
nabos, cebolas e cenouras. Depois de tudo bem lavado, corta-se em pedaços pequenos e põe-se ao lume ( da
lareira ) numa panela de pernas, a cozer com bastante água. Junta-se as
castanhas que já estavam previamente amanhadas. Para tempero junta-se um bom
pedaço de toucinho ou na deste uma fatia de unto, acrescenta-se sal q.b. Coze
lentamente até que tudo esteja bem cozido.
Depois de cozido o caldo retiram-se, com uma escumadeira, algumas
castanhas que se reservam. O que ficou no panela é amassado com garfo e a
escumadeira. Junta-se ao caldo couve troncha cortadas grosseiramente e deixa-se
cozer.
Depois de pronta antes de servir, esmigalham-se com a mão para as
malgas, as castanhas reservadas.
[2] Estufado de javali com Castanhas: Limpa-se a carne e põe-se a
refogar com banha, em lume brando, juntam-se cebolas em rodelas finas, alhos e
salsa tudo bem picado e uma folha de loureiro. Tempera-se com uma mão de sal,
pimenta e noz-moscada. Tapa-se o tacho e de quando em vez agita-se.
As castanhas, depois de terem sido golpeadas, são postas a cozer em água
com sal. Depois de cozidas, descascam-se e antes do estufado ficar pronto
juntam-se as castanhas.
Serve-se simples ou com batatas cozidas, acompanhado por um bom maduro
tinto da região.
[3] Compota de Castanha: (Quantidades: 1,5 kg de castanha para um 1kg de
açúcar) Utilizam-se se possível castanha “ rebordã ”. Descascam-se tirando só a
casca de fora ( a pele não se tira ) levam-se ao lume numa panela com bastante
água. Quando ferver, aguarda-se à volta de 2 minutos, tira-se a panela do lume
e escorresse a água. Pelam-se as castanhas ainda quentes, mantendo as outras
aquecidas, tapando a panela com um pano. Depois de peladas passam-se (dentro de
um passador) por água fria.
Num tacho (de esmalte) põe-se ao lume açúcar com 3,5 dl de água e uma
vagem de baunilha com alguns cortes, ferve até ficar em calda de ponto fraco.
Põem-se as castanhas no tacho, juntas num montinho (para não se partirem), e
ferve durante 2 minutos. Retiram-se as castanhas com uma escumadeira. No dia
seguinte, leva-se a calda outra vez ao lume e quando levantar fervura juntam-se
as castanhas e deixa-se apurar durante 15 minutos, ou até a calda ficar
consistente.
Deixa-se arrefecer, metem-se as castanhas num frasco de vidro (de
gargalo largo) e cobram-se com a calda. Depois de arrefecer completamente
fecha-se o frasco.
A matança do porco
No rigor do Inverno, de Dezembro a Janeiro, porco cevado pronto para o
espetar da faca, é a altura da matança.
Mas,
para ficar bem cevado, houve que criar o animal. Desmamado o leitão, agora larego,
foi feita a engorda com alimentação farta, a vianda ou lavagem (batata miúda,
restos de comida, nabos, castanha e outros produtos) ferve o dia todo no
caldeiro, na típica lareira transmontana. A custo (cevar o animal não fica barato)
e com trabalho o reco fica cevado. É então chegado o dia da matança do porco.
Esta noite
entra o quarto crescente, é altura certa para matar o porco; diz o povo que
assim não minga a carne na salgadeira.
Vamos à “festa” da matança ai numa qualquer
aldeia do Concelho.
Logo pelo
nascer do sol, começam a chegar os convidados: compadres, parentes e amigos da
vizinhança. A festa vai ser forte como é costume da casa.
-
Entrem!... Também somos convidados.
Vamos encontrar
as mulheres da casa e outras chamadas para ajudar, em atarefados preparos;
antes do galo cantar, já andavam em grande azáfama pela casa, para estar tudo
pronto mal chegue o matador. Banco pronto, facas afiadas, alguidar para aparar
o sangue, mólho de palha para chamuscar o animal depois de morto, facas e
pedras para o raspar e as cordas, das grossas, para atar o bicho ao banco, não
vá ele fugir.
-
Vem aí o Ti Manel, o melhor matador das
redondezas.
Sim, “o melhor
matador das redondezas”, porque isto de matar um porco tem que se lhe diga, não
é para qualquer um. É preciso saber, não é só espetar a faca e, já está. É que
depois de morto é necessário abrir o porco e cortar as carnes, é uma operação
delicada e que tem de ser feita com mestria. Por isso o dono da casa, – o Ti
António -, chamou o Ti Manel – “ o melhor matador das redondezas”, é de
família, já o pai dele tinha fama de bom matador (de porcos, bem entendido).
Antes de matar
o bicho, há que mata-bichar. O mata-bicho consta de: figos secos, aguardente ou
vinho (para quem preferir), pão, nozes, amêndoas, bolachas, presunto, salpicão
e queijo.
O porco bem
cevado, sem ceia de ontem, pois o animal não pode comer no dia anterior à
matança, grunhe na pocilga como que adivinhando a sorte que o espera.
Entra o Ti
Manel, de corda na mão com o laço já pronto e ata o porco pela boca, alguns dos
homens acorrem em ajuda para levar o bicho, (o maior da aldeia) para o banco e
o atarem, a braço de homem forte, não vá ele fugir. Já houve casos em que,
mesmo bem atado e com a faca espetada, o animal fugiu com banco e tudo.
Porco preso ao
banco, alguidar pronto (com sal, folhas de loureiro e vinho tinto), a faca é
espetada, o cevado esvai-se em tamanho gemido que é de meter dó, de dar
compaixão daquela criatura indefesa. O gemido longo e descendente de agonia do
animal é de arrepiar.
O sangue
jorra, uma mulher com o alguidar, apara-o, batendo-o logo com a mão para não
talhar.
O mólho de
palha já arde, com ele vai ser chamuscado o bicho, as facas e as pedras prontas
para o raspar dos dois lados. O animal é chamuscado e raspado de um lado,
agora, antes de o virar para idêntica operação do outro lado, há que dar força
aos homens; é servido vinho e pão com sangue cozido.
Recuperadas as
forças, o animal é virado, repete-se a operação, chamusca-se com o mólho de
palha a arder e de seguida é raspado com as facas e as pedras. Depois de bem
raspado é lavado e aberto; diz o povo, na sua sabedoria, “ – se queres ver o
teu corpo, mata e abre o teu porco”,... é bem verdade, “os por-dentros” do
animal são igualzinhos aos nossos.
Agora com o
animal aberto, o Ti Manel tira-lhe as tripas, as mulheres vão lavá-las ao rio.
Já sem “os por-dentros” o porco é lavado com vinho, depois é dependurado na
trave forte da adega.
- Por hoje não
se lhe mexe mais, fica assim dependurado para escorrer, só amanhã é que é
desfeito. – Explicou o Ti António, o dono da casa.
Terminado, por hoje, o trabalho dos homens, na sala de jantar da casa (porque
hoje é dia de “festa” e há convidados.), a mesa está pronta para o almoço. É
farta a ementa: batatas cozidas, rojões, fígado de porco, sangue cozido,
presunto e salpicão cozido, arroz de couve e a mais gorda galinha que havia na
capoeira. Não falta o bom vinho tinto da região, para acompanhar.
Depois do almoço a festa continua, os homens
jogam as cartas, recordam velhos tempos, contam histórias. Para eles o trabalho
por hoje acabou, mas para as mulheres ainda há muito trabalho a fazer, pois há
que atar as tripas e fazer os chouriços doces.
Foi numa
destas histórias, contada pelo Ti Manel, que ficamos a saber a do porco que já
atado ao banco, com cordas bem fortes e com os nós bem dados, garantiu o
contador que foi o próprio que os atou, o animal com a faca espetada, virou-se,
com o banco atado ao lombo e assim fugiu pelo terreiro fora. Os homens que
estavam por perto correram para apanhar o cevado, mas o bicho esgueirava-se por
entre eles, às tantas embicou para uma arrecadação que ali havia e meteu-se lá
dentro. Então foi ai quando o Ti Manel deitou a mão à mangueira de água, (auga
como diz o Ti Manel) abriu a torneira no máximo, para ficar com bastante
pressão e, virou-a contra o animal para o afugentar e obrigar a sair de dentro
da arrecadação, os outros homens cá fora, uns “armados” de paus para o que
desse e viesse, lá conseguiram apanhar o cevado e voltar a por banco direito
com ele em cima, para então Ti Manel voltar a espetar a faca bem fundo para o
animal morrer de vez.
O porco
dependurado na trave forte da adega (lugar fresco) vai escorrendo até ser
desfeito.
No dia
seguinte, o Ti Manel, madrugou, chegou ainda o sol não tinha nascido, para se
preparar para a desfeita do porco. Nós também voltamos para continuarmos a
acompanhar e aprendermos como é uma matança do porco.
Tudo pronto: o
banco lavado, as facas afiadas, os alguidares e tabuleiros para pôr a carne, as
toalhas para tapar e tudo o mais que é necessário. Só falta o porco, que se bem
se lembram está a escorrer desde ontem dependurado na trave mestra da adega.
O cevado já
aberto e escorrido é posto no banco, o mesmo em que foi morto, o Ti Manel
começa por lhe cortar a cabeça, que depois, no fim, vai desfazer. De seguida,
parte o reco ao meio, deixando a soã inteira, depois corta-lhe os presuntos (são
as patas e coxas de trás) e as espáduas, também chamadas pás (são as patas e
coxas da frente), “ ó despois” separa as costelas e o lombo, finalmente desfaz
a cabeça e é tudo levado para a cozinha onde as mulheres preparam as carnes.
Os presuntos,
as espáduas, as orelhas e o focinho, bem como algum toucinho vão para a
salgadeira, onde ficam durante algum tempo a curar no sal.
Agora, já na
cozinha, os homens que ajudaram na desfeita e, nós que apesar da pouca ou
nenhuma ajuda, para comer cá estamos, saboreamos o lombo assado na brasa, enquanto
as mulheres o cortam aos bocados e o põem num alguidar com vinho, água (mais
água do que vinho), alhos, sal, loureiro e laranja as rodelas.
- Esta carne
irá ficar assim em adobo durante uns quatro dias, sendo mexida de vez em quando
com uma colher de pau. – Explicou a Ti Maria, a dona da casa, para os
convidados de fora, que não sabem nada destas cousas, conforme ela diz e,
acrescentou:
- É depois, desta carne que se fazem
os salpicões, com as tripas largas do porco e, as linguiças com as mais finas.
As carnes ensanguentadas e os boches (bofes), ficam num alguidar à parte também
de adobo, são para depois se fazerem as bucheiras. As tenrílhas são para fazer
o botélo, que é cheio na bexiga do porco e nas tripas mais grossas, leva as
tenrílhas e carne da que está em adobo; mas só é comido lá para o Carnaval.
Feito
o fumeiro de carne e posto a secar ao fumo da lareira, é feito o fumeiro de pão
(assim chamado porque para além das carnes, leva também pão), são: as alheiras
e os azedos.
As alheiras
também
levam carne de galinha. Este tipo de fumeiro típico do Nordeste Transmontano,
tanto quanto se sabe tem a sua origem nas comunidades judaicas que viviam na
região no tempo da Inquisição. Como é do conhecimento de todos, os Judeus não
comem carne de porco, pelo que para “enganar” faziam, durante o inverno, este
tipo de enchido, no qual só punham pão e carne de galinha ou carne de caça.
Aqui na casa
da Ti Maria, ainda se fazem as “chacinas”, (fumeiro já não muito usual, mas
típico desta região) estas são feitas de carne de vitela, que esteve em adobo,
e com lombo de porco, também de adobo, metade de cada e são cheias nas tripas
largas do porco; são comidas cozidas. É provável que este tipo de fumeiro,
também tenha origem nas comunidades judaicas da região, mas ai sem a carne de
porco, com o mesmo propósito com que eram feitas as alheiras, até porque com
este género de fumeiro seria mais fácil “enganar” e fazer crer que comiam carne
de porco. Sendo posteriormente adoptado e adaptado pelos cristãos,
acrescentando-lhe estes, a carne de porco.
Tudo acabado,
finda a festa da matança, despedimo-nos da Tia Maria, do Ti António e claro do
Ti Manel.
O Ti António,
convida-nos para a prova do fumeiro.
O Ti Manel,
diz-nos adeus com a mão no ar e lembra que não podemos faltar à prova.
- É de comer e
chorar por mais. – Diz-nos com ar convidativo.
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Rojões à moda da Ti Maria
Corta-se, a carne da barriga do porco em pedaços
grandes com o couro.
Põe-se uma panela de ferro (vazia) ao lume, deixa-se
aquecer bem. Deitam-se os pedaços da carne e por cima o sal. Deixa-se a carne
cozinhar até ficar bem passada e soltar toda a gordura.
Para acompanhar: cozem-se batatas inteiras com a
pele bem lavadas, numa panela com água e sal.
Servem-se acompanhados pelas batatas ou pão centeio.
A apanha da azeitona
Na
entrada da Câmara Municipal, podemos ver dois paneis em azulejos (de autor
desconhecido – assinatura ilegível) com cenas da lide do campo; um deles evoca a
apanha da azeitona, algures num dos muitos olivais de Concelho. A oliveira
ocupa, ainda hoje, um dos lugares de destaque na economia agrícola concelhia.
Actualmente, apesar da
industrialização da agricultura, a apanha da azeitona, na maioria dos olivais,
continua a ser feita à maneira tradicional por ranchos de homens e mulheres,
eles de vara na mão varejando a oliveira, elas agachadas apanhando a azeitona
caída nas lonas.
Esta cena dá uma certa beleza e
alegria à paisagem de Inverno da nossa região, emprestando-lhe um ar de tempos
longínquos, revivendo ano a ano tradições e costumes, a mesma cena que aquele
painel grava e perpétua, que continuam vivas nos trabalhos do campo, as quais
apesar das novas tecnologias não ficaram esquecidas na memória do tempo. Bom
seria que nunca fossem esquecidas, dando assim vida à cena do painel, em cada
um dos olivais da região.
Vivendo a cena daquele painel,
que encerra em si tradições e costumes, hoje talvez um pouco alterados, mas
ainda assim vivos na memória do nosso povo e vividos nas aldeias do Concelho, -
vamos apanhar azeitona.
Ranchos de azeitoneiros, (nome
dado aos homens e mulheres que apanham a azeitona) contratados geralmente ao
par, (homem e mulher) pagos à jeira (jeireiros) e a seco (sem alimentação por
conta do patrão), podemos encontrá-los por esses olivais, entregues à sua
tarefa, chegado o frio de Novembro até finais de Janeiro.
Logo de madrugada estão eles à
porta do “patrão” (contratador); outrora eram também vistos na praça da aldeia,
depois do mata-bicho, mais ou menos farto, tomado em casa de cada um e segundo
as suas posses, partem em grupo rumo ao olival, pois o trabalho espera-os.
A geada desta noite deixou um
manto que faz lembrar neve, ainda se sente, mas eles, não sei se pelo hábito se
pela aguardente do mata-bicho, parecem não a sentir.
Agora no olival, o painel ganho
vida, – ainda bem que não esta muito geado, senão hoje não se poderia varejar,
a oliveira ficava melindrada e para o ano não dava azeitona!...dizem.
Começa o
trabalho, os homens pegam nas varas, as mulheres com as cestas metidas no
braço.
Com pancadas
dadas com a força necessária, mas com suavidade e mestria pelas cumpridas
varas, empunhadas pelos homens de mãos treinadas a maneja-las, a azeitona cai
em cima das lonas, previamente estendidas no chão do olival, alguns homens
estão empoleirados na oliveira, para varejarem as partes mais altas. As
mulheres agachadas, vão apanhando a azeitona, metendo-a nas cestas, que depois
de cheias são despejadas para as sacas de lona.
Alguma
azeitona, principalmente a dos ramos mais baixos é ripada à mão, quando a
oliveira é nova as mulheres colhem-na directamente dos ramos baixos, para não
ferir a oliveira, dos ramos do cimo, os mais altos, as mulheres chegam-lhes com
um escadote.
Assim se foi
passando a manhã, o sol já vai alto, marca meio-dia, está na hora do almoço.
Almoço de seco, composto por: pão, carne assada ou cozida, queijo, presunto,
toucinho, salpicão e linguiça; é melhor ou pior conforme o que cada um pode e
trouxe de casa, pois a jeira é a seco. A seco não significa que falte alguma
coisa com que molhar a goela, que trabalhar dá fome mas também faz sede, por
isso não falta o bom vinho tinto da região.
Findo o
almoço, o trabalho contínua até por volta das cinco ou seis da tarde, estamos
no Inverno e escurece mais cedo, a esta hora ainda com alguma luz, de volta à
aldeia os azeitoneiros transportam as sacas de azeitona em carros de bois (actualmente
nos atrelados dos tractores), para o armazém, onde são guardadas as sacas, mais
tarde já no fim da apanha, será limpa (separada das folhas) é ensacada e fica
no armazém onde espera pela ida para o lagar.
Depois de
toda a azeitona apanhada é chegada a hora de fazer o azeite; nem de toda, alguma
será para curar e conservar, utiliza-se para este fim geralmente a azeitona que
foi ripada ou aquela que foi apanhada à mão. São curadas por métodos
artesanais: quartilhadas (golpeadas com três ou quatro golpes dados no sentido
longitudinal do fruto) tratadas com água, a qual é mudada várias vezes para que
a azeitona perca o verdor (acidez), sendo depois metidas em talhas com água,
loureiro, tomilho, laranja ou limão. Conservadas assim para serem consumidas ao
longo do ano, acompanhando os apetitosos pratos da cozinha regional. - E por
que não comê-las só com pão? São tão saborosas comidas com a merenda numa tarde
de Inverno junto à lareira, como no Verão debaixo da ramada à fresca da tarde.
Outra que foi
apanhada ainda estava um pouco verde ou aquela que o vento deitou ao chão, será
para fazer as alcaparras: azeitona preparada de um modo especial e desprovidas
de caroço. Só aqui na região se prepara a azeitona desta maneira. As alcaparras
temperadas com azeite, sal e cebola picada, são acepipe digno de mesa de reis.
Para acompanhar presunto ou salpicão não há coisa melhor.
Antes de ir
para o lagar, a azeitona é limpa. A limpeza é feita em sítio descampado, com
pás de madeira manejadas com cuidado para não magoar a azeitona, esta é atirada
ao ar, o vento que sopra leva a folha e o fruto cai na lona que cobre o chão.
Separada da folha fica assim pronta para a prensa do lagar.
No lagar ( o tradicional ) , actualmente nos
lagares industrializados é diferente, a azeitona é posta na prensa de pedra e,
a custo de braços fortes esmagada lentamente, ficando os resíduos agarrados aos
capachos (espécie de tapete de corda
para aparar a azeitona desfeita na prensa ), vão sendo espremidos até não haver
mais liquido, pela bica vai saindo o sumo da azeitona, aparado pela caldeira
onde ferve para ser limpo de impurezas ficando depois puro com a cor verde ouro
característica do azeite, uma das riquezas do Concelho.
Nos lagares
modernos, industrializados, com esquisitas máquinas de botões e alavancas,
perde-se a tradição, a beleza, os cheiros e sabores do antigo lagar da aldeia,
há quem diga que até o azeite perde o sabor de outros tempos, em que as
torradas de pão e azeite tinham um gosto tão bom. Nestes, nos modernos, já não
se fazem torradas no borralho que aquece a caldeira, mergulhadas depois no
azeite, ainda quente, acabado de sair. Mas mesmo nos modernos lagares, este
liquido precioso continua a ter qualidade e é reconhecido como um dos melhores
azeites do país.
Feito o
azeite é metido em talhas, onde se conserva durante todo o ano, de onde é
retirado para o consumo diário e, nas almotolias vai à mesa na casa
transmontana, para regar os vários pratos da cozinha regional. Algum é
comercializado para todo o pais e até para o estrangeiro, levando longe o sabor
da nossa terra transmontana.
O outro
painel...
As segadas
O outro
painel é alusivo às segadas, numa qualquer seara do Concelho. Não fora, também,
o cereal uma das nossas riquezas agrícolas.
Macedo de Cavaleiros foi conhecido
durante muito tempo, como o Concelho da fouce. Referiam-se desta forma à sua
riqueza em cereais, principalmente em trigo e centeio; ou num outro sentido, um
pouco depreciativo, ao facto de nas contendas que por estes lados havia, ser
usada a fouce como arma.
Noutros
tempos na feira de São Pedro, realizada anualmente a 29 de Junho, dia do patrono
da Cidade, grupos de pessoas vindos de várias regiões à procura de trabalho nas
searas, seu ganha-pão nestas paragens ricas em cereais, chegavam à Vila de
comboio. As camaradas de segadores, (designação dada, nesta região, aos grupos
de segadores, constituídos por homens e mulheres) enchiam a praça principal (Praça
Agostinho Valente) e as redondezas, onde esperavam com música e cantares, em
ambiente de festa alegre, que os proprietários das searas (os patrões) os
viessem rogar ( contratar )
Em verdadeiro
arraial, entoavam cantares, dançavam e bebiam misturando música com vinho e
alegria. A vila era palco de animada festa, aonde não faltavam por serem
característicos – os robertos, com que marcavam o compasso dos seus cantares.
Seguravam os robertos mãos calosas, de homens de pele escura queimada pelo sol,
deixando adivinhar no rosto rugas, gravadas pelo tempo e trabalho árduo; homens
rudes para o mais duro labor das lides da agricultura.
Às vezes
depois de bem bebidos, acirrados pelo calor, das altas temperaturas da época,
mas também pelo do vinho, provocavam rixas. Então a alegria dava lugar ao
confronto verbal e físico entre camaradas rivais e, em vez de música ouviam-se
gritos de raiva, dor e desespero, acompanhados por promessas de vingança de uns
e vozes de incitamento de outros.
Assim
passavam o tempo, enquanto esperavam que o seu capataz (chefe da camarada)
ajustasse com o Patrão, a paga em dinheiro, comida e garrafões de vinho.
Na Praça dos Segadores, (praça que fica perto
da praça Agostinho Valente) podemos “reviver” estes tempos nas estátuas apiadas
que ai se encontram, duas delas representam o momento em que o Patrão esta em
negociações com o Capataz, mais afastada uma mulher da camarada, transporta á
cabeça uma cesta com a merenda (alusivo a um momento já na seara).
Este acordo
era feito por ajuste, na altura pago por maior preço que a jeira de um
trabalhador vulgar, não se ajustava ao dia, ajustava-se pelos dias de trabalho
necessários para “limpar” a seara; já lá vão uns bons anos. Incluía, fora o
preço ajustado, as várias refeições do dia: mata-bicho, almoço, merenda,
jantar, “taco” (pequena merenda antes da ceia) e ceia, assim era quando o
ajuste era “a comer”. Se fosse a seco o ajuste incluía os géneros alimentícios
necessários para confeccionar as várias refeições para o ao sustento da
camarada, para além da paga em dinheiro. Neste caso, eram as mulheres da
camarada que confeccionavam as refeições, geralmente na própria seara, ou
então, mais raramente, em instalações cedidas pelo Patrão, que podiam ser na
casa deste ou em algum casebre perto da seara.
A vantagem
desta modalidade de ajuste “a seco" estava no facto de tirar trabalho e as
canseiras que o ajuste “a comer” trazia para o Patrão, ou melhor para as
mulheres da casa deste.
O acordo
podia ser também feito à jeira, ou seja por remuneração diária, embora este
tipo de acordo não fosse muito usual. Havia camaradas, principalmente as
formadas por ciganos, que ajustavam o trabalho à seara, variando o valor
conforme a extensão da seara contratada. Esta modalidade de ajuste também
incluía as seis refeições diárias, feitas por estes homens ( e mulheres ) de
muito sustento e sede.
Firmado o
acordo, davam vivas ao Patrão – Viva o Senhor “Fulano de Tal”, que é o nosso
patrão! – que os encaminhava para a seara, já bem madura pronta a ser ceifada e
que dentro em pouco não passaria de mais uma restolhada.
Quando a
camarada trabalhava bem e a gosto do Patrão, ficava apalavrada para o ano
seguinte, havendo assim camaradas que trabalhavam anos seguidos para o mesmo
proprietário rural. Nestes casos a camarada chegava à Vila no dia da feira de
São Pedro e na praça, ou noutro local previamente combinado, aguardavam que o
Patrão os viesse buscar para os levar para as searas, que já conheciam dos anos
anteriores.
Chegados à
seara já perto da hora da merenda ou mais tarde, era altura de dar de comer e
dar descanso ao corpo, porque ainda antes do sol nascer, estes homens e
mulheres pegam ao trabalho.
Ainda o sol espreita
atrás dos montes, mal começará a nascer o dia já a camarada está toda acordada
com o mata-bicho feito, prontos para o primeiro dia de trabalho na seara; o
mata-bicho consta de: pão, figos secos, queijo, presunto, salpicão e bacalhau
frito, acompanhado por vinho da região e café bem forte para espevitar. Começa
o trabalho que se ira prolongar até o sol se por, com algumas pausas para as
refeições e para a sesta.
Os homens de
fouce na mão direita, ou na esquerda conforme melhor se ajeita a cada um, a
outra, a que agarra o punhado de cereal para facilitar o corte, com os dedos
protegidos pelas de dilheiras (ou dedeiras) de cabedal, não vá a seitoura (fouce)
cortar-lhes os dedos, vão ceifando o pão, enquanto outros juntam as gavelas
(punhado de cereal já cortado), atando-as em molhos (constituído por um número
variável de gavelas), as mulheres vão pondo-os em pousada (conjunto de quatro molhos).
E assim se vai fazendo o trabalho, só interrompido para o almoço seguido da
sesta, descanso merecido, pela hora que o calor mais aperta.
O almoço,
sempre lauto, era composto por: sopas à segador
,
batatas com cordeiro estufado, tudo bem regado com vinho tinto da região, que
os faria ressonar na calma da sesta. Finda a sesta, já pela hora da fresca, por
volta das quatro da tarde, continua o trabalho, acompanhado por cantares que
iam distraindo o espírito, enquanto o corpo se cansava, avançando na seara e
fazendo crescer atrás de si a restolhada. Feita a merenda (refeição ligeira,
composta por: pão, queijo, presunto, salpicão e chouriços doces), aproveitada
para um curto descanso para dar novas forças ao corpo, logo lhe pegando
arduamente até o sol se esconder atrás dos montes. Chegava assim a hora do jantar e o descanso merecido depois de
um dia de trabalho e muito calor.
Arrastados
pelo vento calmo, que fazia ondular a seara, soavam os cantares e a música, ao
ritmo da qual dançavam uns, enquanto outros aproveitando a brisa fresca da
noite descansavam, deixando-se embalar na melodia, acompanhando com o ressonar
de corpo cansado as vozes dos outros que cantavam ao compasso da concertina.
As
desgarradas acompanhadas à concertina prolongavam-se até à hora de taco,
refeição ligeira, antes da ceia que era servida só lá para a meia-noite. Era
então chegada a hora da deita, para dar descanso ao corpo, que na madrugada seguinte
era dia de trabalho.
Esta
camarada havia de ser a melhor que este ano foi à praça.
As sopas à segador é um prato típico, como o próprio nome indica, destas lides. É confeccionado do seguinte modo: pão de centeio partido de lés a lés e muito fino, disposto às camadas num tacho, é depois amolecido com água quente em que previamente foi cozido bacalhau. O bacalhau é desfiado e misturado ao ensopado de pão. Posteriormente é tudo regado com azeite, a ferver, que previamente tinha sido rijado com alho numa sertã. Após esta operação o tacho é abafado com um pano e é servido bem quente.
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